quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

SOLILÓQUIO

O pai voltou a estar vivo.

Sobre o vale do Ribeiro da Chã, havia agora uma ponte de apenas um arco enorme, (com o rio estreitíssimo lá no fundo) descendo muito e fazendo uma curva apertadíssima quando encontrava a outra encosta.

Daí, subindo sempre, íngreme e a direito, na direcção das Sesmarias. Mais para cima, quase tocando as nuvens, nova torre de um novo cabo de alta tensão para transporte de electricidade. Para onde?

Quase por debaixo da nova ponte um quintalejo de couves. Couves, criadas em barro vermelho, que se engordavam em estrume bem negro com o qual o barro se misturava.

As couves eram lindas, verdes, grandes e repolhudas. Mas assustava-me muito o esforço de cavar o solo e manter belo aquele couval.

Num rodopio de caleidoscópio maravilhoso, havia mais gente (raparigas) conhecida da longínqua juventude: a Preciosa do Ti Júlio, a Preciosa da Ti Piedade, a Ermelinda da Vageira e as irmãs "Grifas" e a Alice do Vale da Fonte.

E eu estava bem, sem preocupações de nenhuma espécie, feliz!

Será ser feliz isto?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Ludovina

A Cecília tinha várias irmãs e irmãos, alguns ainda solteiros que habitavam a mesma casa dos pais, outros casados que viviam em várias cidades do país e que, quando em férias, se alojavam lá ou tinham casa própria. Havia ainda um, casado com uma jovem muito gorda mas bastante bonita, que vivia lá na vila. Era carteiro. De entre as solteiras, a Ludovina era a mais problemática. Feia, nariz torto, dentes que os lábios não conseguiam cobrir completamente, mas um longo cabelo castanho ondulado e embora a pele fosse de um moreno vulgar e de uma textura relativamente grosseira, tinha um corpo de estátua que cobria excessivamente de roupa. De tal maneira que ninguém reparava nela e já ia trintando para quarenta, sem encontrar companhia permanente. Cedo o Cristóvão percebeu que aqueles achaques, aquele nervoso, aquele apego às cerimónias e ao arranjo da igreja, tinha um significado óbvio.

Como visitas da Cecília, a Zulmira e o Cristóvão ficaram em casa dos pais daquela ninhada de filhos.

As divisões eram quase todas de tabique, só as paredes exteriores eram de xisto com cunhais de granito e os tectos de forro de tábuas corridas excepto o último andar que era de telha vã.

Cristóvão gostava dos labirintos e varandas por onde se passava de uma casa a outra, da sequência de alcovas, cozinhas e salas, cubículos e salões.

Altas horas, vindo da rua, trepar, varanda a varanda, a um segundo e depois terceiro piso e encontrar o secreto corpo de mulher, o da Ludovina, que negava até à morte o gosto pelo sexo mas que na soledade da noite, na ausência absoluta de testemunhas, assim se entregava tão despudorada e gulosamente.

Os nãos que valem sins apaixonados e lânguidos tornam as mulheres absolutamente incompreensíveis. Mas que interesse pode isso ter?

Diminui alguma coisa o prazer que nos proporcionam o mistério dos seus pensamentos?

Fiquem-se com eles e ofereçam-nos a loucura dos vossos corpos frementes de desejo



segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Bolos e omeletas

O Mateus costumava dar palmadinhas rápidas com a mão aberta sobre a vulva e púbis da filha para imitar o som de um ovo a ser batido em omeleta, ou a confecção de um bolo, em que se envolvem cuidadosamente açúcar, ovos, manteiga e farinha, batendo constantemente. Eram sons bastante parecidos.
A garota gostava. Frequentemente pedia ao pai, ou a quaisquer outras pessoas da casa, para lhe fazerem a omeleta…
O Mateus era cunhado da Zulmira e a garota, que nascera quando ela veio trabalhar para Lisboa e residia em casa da irmã, tornara-se sua afilhada de baptismo. A sua predilecta.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

EQUÍVOCOS

Nunca ninguém entendeu a verdadeira razão porque o Cristóvão e a Zulmira se haviam casado: tinham tão pouco em comum! E nunca conseguiram dizer um ao outro nada de relevante sobre as respectivas personalidades: sempre foram um equívoco um para o outro. Hoje, ainda continuo convencido de que, se têm ido para a cama antes do casamento, nunca se teriam embrenhado numa relação que a nenhum satisfazia.

Ao princípio ainda parecia que a única coisa que os ligava era o sexo mas, mesmo aí, as coisas foram-se rapidamente deteriorando. Havia muito sexo mas, bem lá no fundo do ser de cada um, nenhum ficava saciado ou razoavelmente feliz. Não conseguiam comunicar – afirmavam grande desejo um pelo outro, procuravam-se assiduamente mas...

As ejaculações do Cristóvão eram abundantes e davam-lhe prazer intenso mas deixavam sempre um rasto de desilusão. A Zulmira gozava, dizia que gozava muito, queria-o sempre lá dentro mas em nove anos de vida em comum afirmava apenas haver tido dois orgasmos com o marido e ficara-lhe a sensação de que poderia ter ido muito mais longe, como realmente ousou ir com a Teresa, com a Cecília e, mais tarde, com o padre Martins.

Pelo caminho ficaram outros desejos, outros afectos, outros arrepios de prazer clandestinos.


terça-feira, 4 de novembro de 2008

Casou-se!

No campanário da igrejinha, o sino tocou convocando a Assembleia de fiéis; mas não muito importante, era só a jovem putinha nova do lupanar da Villa a pedir clientela para si própria: Só para ela.
Casou-se.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

PESADELO, CAUCHEMAR



Três horas da madrugada… Às vezes acordo tão assustado que me parece fazer parte dos sonhos em que desperto.

Sonho que sou mau, grosseiro, cruel, em guerra permanente com tudo e com todos e distingo mal o que é sonho, o que é realidade e sofro. Sofro porque faço sofrer aqueles que muito amo, ou julgo que amo, e a mim próprio. Neste sonho, agitei-me e corri muito, cansei-me; gritei, gritei, gritei numa casa vazia, onde eu sabia que era ouvido, que todos os meus impropérios altissonantes faziam alguém, principalmente a minha actual mulher e a minha filha mais velha que tenho com ela, sofrer dolorosamente. Lembro-me de lhe berrar «traidora» porque ao criticar-me a brutalidade que eu estava a usar contra uns homens ou uns rapazes que se opunham a reparar um automóvel meu, como eu queria, estava a tomar o partido deles e a impossibilitar-me de impor a minha vontade, excessivamente violenta, sentida como faltosa depois de acordado mas absolutamente justa enquanto sonhava.

A minha filha chorava, chorava muito mas não era o seu chorar que me feria, o que me doía era o sofrimento indizível que eu sentia lhe ter feito experimentar com os meus gritos, as minhas palavras, os nomes horríveis que lhe dirigi.

Que relação poderá isto ter com a narração que venho fazendo neste blogue?

Este tac-tac-tac-tac-tac-tac do relógio da sala quase me endoidece! Porque o oiço tão nítido, eu que oiço mal e não costumo sequer ouvi-lo?


quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A culpa e o deleite

A Cecília era muito íntima da Zulmira, tão íntima, que lhe permitia saber que, quando a amiga era chamada a capítulo pela madre das freiras, lá do colégio de Guimarães, entrava numa fase de pré êxtase ou mesmo orgasmo puro, que ela disfarçava com os soluços e as lágrimas de "arrependimento" das "maldades" que propositadamente cometia para ser chamada a ouvir a reprimenda e ser posta de castigo. Parece que naquele colégio as reprimendas eram dadas em privado, só a madre e a aluna prevaricadora, num gabinete próprio onde as janelas eram parcialmente fechadas se fosse de dia e a iluminação reduzida se fosse à noite. Tal ambiente, acompanhado de uma proximidade física, junto com uma postura de sujeição – a aluna ajoelhada quase sobre o regaço da madre, proporcionava grande erotismo à confissão e consequente reprimenda, tornando estes encontros em momentos de grande deleite mútuo. Não acredito que uma madre com estudos de psicologia não soubesse que comportamento estava a induzir na jovem rapariga a seus pés.


domingo, 21 de setembro de 2008

Uma aldeia na Beira

Quando o Cristóvão pisou pela primeira vez as ruas tortuosas de S. Vicente da Beira, sentiu um apelo, um encanto, um apetite por aquela terra que nunca mais o abandonaria durante o resto da sua vida. Era pelas férias da Páscoa. A carreira parava a porta do “Noco”, na estrada nacional. Estava uma névoa pardacenta, chovia uma chuva parva miudinha e o ar que se respirava cheirava a fumo de lenha, giestas e estevas e era húmido a mais não poder ser.

Alguns curiosos vieram à porta da venda espreitar mas logo se recolheram desinteressados. A Cecília viera ao seu encontro e beijaram-se efusivamente. Ele afastou-se, recebeu das mãos do condutor a mala que este descera do tejadilho da camioneta e regressou para junto da mulher, a Zulmira, que ainda estava com o braço sobre o dorso da amiga, ambas tagarelando. (ele ainda nem suspeitara da bissexualidade delas.)

Meteram-se pelas ruas estreitas, calcetadas de seixos, onde os pés se esforçavam por manter o equilíbrio, a Rua Direita e junto à Igreja Matriz alcançaram a Travessa da Misericórdia. As casas eram de xisto sem reboco e os cunhais de granito. De granito eram também os aros das portas e das janelas e os rebates por onde se acedia às lojas e às escadas que conduziam ao outro piso. Só havia uma rua com paralelepípedos de granito, a rua do Manuel da Silva, que ia até ao Calvário e entroncava na estrada nacional, junto ao posto da Guarda Republicana, quase à ponte sobre a Ribeira da Ramalhosa, na curva para o Casal da Fraga.

A chuvinha irritante continuava. Foi muito repousante encontrarem o fogo da lareira da cozinha, e a braseira na sala, sob a camilha de tecido rendado e franjado que cobria a mesa redonda, onde todos passaram serões bem agradáveis.


sábado, 20 de setembro de 2008

Alagou-lhe o noivado

A Zulmira casou-se.
A sua permanência solteira em Lisboa preocupava a família que temia a sua perdição naquele antro, que era a Capital, vista do mundo rural.
Assim, quando souberam que a menina Zulmira ia casar-se ficaram radiantes. Ainda por cima o rapaz era um bom partido, um médico, também oriundo da província, de uma aldeia perto de Coimbra, que conhecera a menina quando ela ainda estudava nesta cidade e não lhe perdera o rasto até Lisboa.
Mas a rifa saiu-lhes em branco! Uma desilusão! A Zulmira foi preterida por uma outra vizinha mais capitosa e teve de se contentar com um companheiro de trabalho, professor como ela, para desgosto e grande raiva da família que já estava a pensar juntar um médico aos já dois advogados existentes na família.
Quebraram todas as tradições: o casamento não se fez na matriz lá da terra, realizou-se na capital numa cerimónia simples na Igreja da Luz, em Carnide. Uma pobreza franciscana.
Esta rapariga só dava desgostos à família!

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Guimarães, Covilhã, Lisboa

Não são conhecidos os motivos que terão levado a menina Zulmira, já adolescentezinha, a transferir-se de Guimarães no colégio das freiras do Imaculado Coração de Maria, para o Colégio das Doroteias, na Covilhã. Em Guimarães era interna e teve as suas primeiras experiências sexuais com colegas e noviças. Mais tarde contarei como se envolveu com uma das madres.

Foi nesta última cidade que, já como externa, fez o exame do 5.º ano do liceu, antes de rumar a Lisboa a fazer as provas de admissão ao Magistério Primário.

Porque se terá dirigido à capital para começar a trabalhar?

Foi sempre boa aluna, concluiu o Exame de Estado com 16 valores. Estava em condições de fazer uma carreira brilhante.

Foi viver em casa de familiares já há muitos anos residentes em Lisboa.

O vencimento de um professor agregado (o patamar inferior da carreira) era, naquela época, de 1.600$00. (8,00 €.)

Há três anos que havia guerra no chamado Ultramar.

Não posso saber se este facto terá alguma relevância nesta história!

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Inveja e Vaidade

De como foi a sua meninice e juventude, pouco se sabe. Apenas alguns comentários, trocados aqui e ali, com amigos ou colegas. Mais nada!

Supõe-se que tenha tido uma infância normal, como a das crianças das aldeias: com grande liberdade, algumas frustrações, muitas memórias, talvez feliz...

Nos primeiros anos do liceu, em Castelo Branco, confidenciou certa vez a uma amiga, sentia-se muito diminuída perante as outras meninas. A maneira de vestir, o porte, a maneira de falar, era para ela motivo de grande embaraço. Sentia-se inferior e uma grande inveja a invadia. Nunca lhe chamou assim, mesmo quando recordava esses tempos, mas toda a sua personalidade estava marcada por essa inveja que não era visível, apenas perceptível nalgumas antipatias por certas pessoas, na maneira como tratava certos alunos, nas opções políticas.



quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Uma Escola nos Subúrbios

A escola era pouco mais que um barracão em forma de H que se prolongava para norte por dois corpos edificados, mais curtos, um ao meio e outro na parte inferior da letra agá. O acesso era pela estrada que a ladeava a norte. A nascente ficavam as salas das raparigas, a poente as dos rapazes, e a sul, depois da primeira haste vertical do H que era o refeitório, cozinha e ginásio, estendiam-se em declive suave, terrenos incultos até um regato emparedado entre canaviais cerrados.
Estes canaviais eram socialmente muito importantes para o bairro, serviam de esconderijo para as brincadeiras dos rapazes e das raparigas, de refúgio e leito para os amantes, eu sei lá para que mais.
Um bairro problemático da periferia de Lisboa dos anos sessenta - recebera desalojados pela construção da Ponte sobre o Tejo, da zona de Monsanto, Serafina e Alcântara e muitos clandestinos de barracas demolidas no tempo e por ordem do Presidente da Câmara de Lisboa, General França Borges.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Arriscar o coiro

Havia uma bruma intensa naquele dia 23 de Setembro de 1965. Esperava-se que antes da tarde levantasse e assim, ninguém em casa da Zulmira pensou em alterar a programa da ida à praia. O marido, a filha mais velha, ainda bebé, e o irmão, que havia chegado a Lisboa na véspera para cumprir o serviço militar obrigatório em Caçadores 5, faziam parte do grupo. Foram para S. Amaro de Oeiras de comboio, pois, nessa atura ainda não tinham automóvel. As águas eram límpidas, a areia fina e quase não havia ondas. O sol não descobria e embora não estivesse frio, por volta do meio-dia começou a chover. Como a chuva engrossasse, regressaram a casa.
Esse inverno de sessenta e cinco, sessenta e seis foi muitíssimo chuvoso. A chuva começou naquele dia e, até Março ou Abril, choveu praticamente todos os dias. Por causa disso grandes neuras aconteceram na família. Entretanto, o Zé embarcou para a Guerra do Ultramar na Guiné, como atirador especial mas, tal como outros combatentes, orgulhava-se de nunca ter matado ninguém. O início ou ou fim de uma comissão eram bastante perigosos mas, depois, estabelecia-se um savoir faire entre os dois lados do conflito e chegavam mesmo a trocar géneros, informalmente. Deixavam, à noite, três ou quatro sacas de arroz junto ao arame farpado da fronteira e pela manhã iam lá buscar a vitela que os turras tinham deixado atada à estaca. Entre a arraia-miúda não se estabelecem ódios de morte. Pois só se combate porque os comandantes mandam, para fazer a vontade aos políticos, que fazem a vontade aos detentores dos interesses económicos, esses sim, com dinheiro e fazenda a ganhar ou perder, segundo os azares ou a sorte da guerra. Na guerra só os poderosos e os mercenários ganham, mas só arriscam o coiro os que combatem .

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Portagem

A menina Zulmira nasceu numa aldeia da Beira Baixa, já há muitos anos. Estudou em Castelo Branco e na Covilhã, fez o Curso do Magistério Primário em Lisboa.
Em 1963 era professora, recém formada, em Lisboa, num daqueles bairros problemáticos da periferia...

Cristóvão


Cristóvão só comprou automóvel depois de, penosamente, ter tirado a carta de condução em 1967. Logo, só em 1968, já no fim do ano, é que apareceu lá no bairro com um Simca 1000 novo. Era um carrito creme, muito claro, quase branco. Tinha um roncar-ronronar de motor característico e o condutor imensos vícios e tiques de condução. Um dos mais parvos era a grande aceleração que fazia quando estacionava, antes de desligar o carro. A Zulmira gostava daquela forma de chamar a atenção. Era, quer quisesse ou não, uma espantosa forma de se exibir.