quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A culpa e o deleite

A Cecília era muito íntima da Zulmira, tão íntima, que lhe permitia saber que, quando a amiga era chamada a capítulo pela madre das freiras, lá do colégio de Guimarães, entrava numa fase de pré êxtase ou mesmo orgasmo puro, que ela disfarçava com os soluços e as lágrimas de "arrependimento" das "maldades" que propositadamente cometia para ser chamada a ouvir a reprimenda e ser posta de castigo. Parece que naquele colégio as reprimendas eram dadas em privado, só a madre e a aluna prevaricadora, num gabinete próprio onde as janelas eram parcialmente fechadas se fosse de dia e a iluminação reduzida se fosse à noite. Tal ambiente, acompanhado de uma proximidade física, junto com uma postura de sujeição – a aluna ajoelhada quase sobre o regaço da madre, proporcionava grande erotismo à confissão e consequente reprimenda, tornando estes encontros em momentos de grande deleite mútuo. Não acredito que uma madre com estudos de psicologia não soubesse que comportamento estava a induzir na jovem rapariga a seus pés.


domingo, 21 de setembro de 2008

Uma aldeia na Beira

Quando o Cristóvão pisou pela primeira vez as ruas tortuosas de S. Vicente da Beira, sentiu um apelo, um encanto, um apetite por aquela terra que nunca mais o abandonaria durante o resto da sua vida. Era pelas férias da Páscoa. A carreira parava a porta do “Noco”, na estrada nacional. Estava uma névoa pardacenta, chovia uma chuva parva miudinha e o ar que se respirava cheirava a fumo de lenha, giestas e estevas e era húmido a mais não poder ser.

Alguns curiosos vieram à porta da venda espreitar mas logo se recolheram desinteressados. A Cecília viera ao seu encontro e beijaram-se efusivamente. Ele afastou-se, recebeu das mãos do condutor a mala que este descera do tejadilho da camioneta e regressou para junto da mulher, a Zulmira, que ainda estava com o braço sobre o dorso da amiga, ambas tagarelando. (ele ainda nem suspeitara da bissexualidade delas.)

Meteram-se pelas ruas estreitas, calcetadas de seixos, onde os pés se esforçavam por manter o equilíbrio, a Rua Direita e junto à Igreja Matriz alcançaram a Travessa da Misericórdia. As casas eram de xisto sem reboco e os cunhais de granito. De granito eram também os aros das portas e das janelas e os rebates por onde se acedia às lojas e às escadas que conduziam ao outro piso. Só havia uma rua com paralelepípedos de granito, a rua do Manuel da Silva, que ia até ao Calvário e entroncava na estrada nacional, junto ao posto da Guarda Republicana, quase à ponte sobre a Ribeira da Ramalhosa, na curva para o Casal da Fraga.

A chuvinha irritante continuava. Foi muito repousante encontrarem o fogo da lareira da cozinha, e a braseira na sala, sob a camilha de tecido rendado e franjado que cobria a mesa redonda, onde todos passaram serões bem agradáveis.


sábado, 20 de setembro de 2008

Alagou-lhe o noivado

A Zulmira casou-se.
A sua permanência solteira em Lisboa preocupava a família que temia a sua perdição naquele antro, que era a Capital, vista do mundo rural.
Assim, quando souberam que a menina Zulmira ia casar-se ficaram radiantes. Ainda por cima o rapaz era um bom partido, um médico, também oriundo da província, de uma aldeia perto de Coimbra, que conhecera a menina quando ela ainda estudava nesta cidade e não lhe perdera o rasto até Lisboa.
Mas a rifa saiu-lhes em branco! Uma desilusão! A Zulmira foi preterida por uma outra vizinha mais capitosa e teve de se contentar com um companheiro de trabalho, professor como ela, para desgosto e grande raiva da família que já estava a pensar juntar um médico aos já dois advogados existentes na família.
Quebraram todas as tradições: o casamento não se fez na matriz lá da terra, realizou-se na capital numa cerimónia simples na Igreja da Luz, em Carnide. Uma pobreza franciscana.
Esta rapariga só dava desgostos à família!

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Guimarães, Covilhã, Lisboa

Não são conhecidos os motivos que terão levado a menina Zulmira, já adolescentezinha, a transferir-se de Guimarães no colégio das freiras do Imaculado Coração de Maria, para o Colégio das Doroteias, na Covilhã. Em Guimarães era interna e teve as suas primeiras experiências sexuais com colegas e noviças. Mais tarde contarei como se envolveu com uma das madres.

Foi nesta última cidade que, já como externa, fez o exame do 5.º ano do liceu, antes de rumar a Lisboa a fazer as provas de admissão ao Magistério Primário.

Porque se terá dirigido à capital para começar a trabalhar?

Foi sempre boa aluna, concluiu o Exame de Estado com 16 valores. Estava em condições de fazer uma carreira brilhante.

Foi viver em casa de familiares já há muitos anos residentes em Lisboa.

O vencimento de um professor agregado (o patamar inferior da carreira) era, naquela época, de 1.600$00. (8,00 €.)

Há três anos que havia guerra no chamado Ultramar.

Não posso saber se este facto terá alguma relevância nesta história!

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Inveja e Vaidade

De como foi a sua meninice e juventude, pouco se sabe. Apenas alguns comentários, trocados aqui e ali, com amigos ou colegas. Mais nada!

Supõe-se que tenha tido uma infância normal, como a das crianças das aldeias: com grande liberdade, algumas frustrações, muitas memórias, talvez feliz...

Nos primeiros anos do liceu, em Castelo Branco, confidenciou certa vez a uma amiga, sentia-se muito diminuída perante as outras meninas. A maneira de vestir, o porte, a maneira de falar, era para ela motivo de grande embaraço. Sentia-se inferior e uma grande inveja a invadia. Nunca lhe chamou assim, mesmo quando recordava esses tempos, mas toda a sua personalidade estava marcada por essa inveja que não era visível, apenas perceptível nalgumas antipatias por certas pessoas, na maneira como tratava certos alunos, nas opções políticas.



quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Uma Escola nos Subúrbios

A escola era pouco mais que um barracão em forma de H que se prolongava para norte por dois corpos edificados, mais curtos, um ao meio e outro na parte inferior da letra agá. O acesso era pela estrada que a ladeava a norte. A nascente ficavam as salas das raparigas, a poente as dos rapazes, e a sul, depois da primeira haste vertical do H que era o refeitório, cozinha e ginásio, estendiam-se em declive suave, terrenos incultos até um regato emparedado entre canaviais cerrados.
Estes canaviais eram socialmente muito importantes para o bairro, serviam de esconderijo para as brincadeiras dos rapazes e das raparigas, de refúgio e leito para os amantes, eu sei lá para que mais.
Um bairro problemático da periferia de Lisboa dos anos sessenta - recebera desalojados pela construção da Ponte sobre o Tejo, da zona de Monsanto, Serafina e Alcântara e muitos clandestinos de barracas demolidas no tempo e por ordem do Presidente da Câmara de Lisboa, General França Borges.