quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Estilhaço n.º 0054 - As mulheres bonitas com quem nos cruzamos

O tempo apaga muitos traços da personalidade dos homens mas realça outros. Os que resultam dos fracassos são, parece-me, mais fáceis de esquecer. Assim pensava o Cristóvão, caminhando pelo passeio da Avenida da República a caminho do Campo Grande. Tinha passado sob a linha do caminho-de-ferro, em Entre-Campos. Chovia uma chuva miudinha e certa, ele deixava o cabelo encharcar-se-lhe. Apetecia-lhe chorar e até era fácil esconder as lágrimas nas gotas da chuva que lhe rolavam pelo rosto mas não chorava. Os seus pensamentos seguiam errantes sem serem perturbados na sua errância  pelo automatismo do andar, das vistas  das casas da cidade que não via claramente, adivinhava apenas numa nebulosa difusa, por entre os seus pensamentos.
Avenida da República, n.º 50,  edifício já demolido, 1970
Era um dos muitos dias foscos de Lisboa quando chove. Já nem sei em que mês mas podia ser num qualquer, vinha todo remordido. (Refodido era capaz de ser mais próprio!) Sempre que pensava naquela gaja era assim. E, no entanto, já tivera dela boas recordações, sentimentos de ternura, afáveis palavras. Agora tudo era ódio. Quando casara com ela fora para valer, nunca imaginara ter de a deixar e seguir outra via, deixá-la para trás como uma mala perdida a que nenhum sentimento o ligava.
Cruzou-se, no passeio da rua em que seguia à chuva, com uma mulher muito bonita. Apeteceu dizer-lhe: - Como és bonita, Deus te abençoe! Mas não disse nada. No entanto continuou a pensar nela: - Deus, tu que existes em algum lado, toma conta desta mulher como tens tomado conta de mim. Curiosamente, o ódio que sentia pela Zulmira esvaiu-se e não pensou mais nela até chegar a casa...

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